quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Trecho do livro Mulheres que correm com os lobos


Cresci
próximo à fronteira dos estados de Michigan e Indiana, cercada de bosques, pomares
e campos e perto dos Grandes Lagos. Ali, os trovões e os relâmpagos eram meu
principal alimento. Os milharais estalavam e falavam alto à noite. Mais ao norte, os
lobos vinham até as clareiras ao luar, para pular e uivar. Todos podíamos beber dos
mesmos regatos sem medo.
Embora eu não a chamasse por esse nome na época, meu amor pela Mulher
Selvagem começou quando eu era pequena. Eu era uma esteta, não uma atleta, e meu
único desejo era o de perambular em êxtase. A mesas e cadeiras, eu preferia o chão,
as árvores e as cavernas, porque nesses lugares eu sentia como se pudesse me
encostar no rosto de Deus.
O rio sempre queria ser visitado depois que escurecesse; os campos
precisavam de alguém que neles caminhasse para que pudessem farfalhar
conversando. As fogueiras precisavam ser feitas na floresta à noite; e as histórias
precisavam ser contadas onde os adultos não pudessem ouvir.
Tive a sorte de crescer na natureza. Lá, os raios me falaram da morte repentina
e da evanescência da vida. As ninhadas de camundongos revelavam que a morte era
amenizada pela nova vida. Ao desenterrar "contas de índios", trilobites da terra preta,
eu compreendia que os seres humanos estão por aqui há muito, muito tempo. Tive
aulas sobre a sagrada arte da autodecoração com borboletas pousadas no alto da
minha cabeça, vaga-lumes servindo de jóias durante as noites e rãs verde-esmeralda
como pulseiras.
Uma loba matou um de seus filhotes que estava mortalmente ferido. Para mim
foi como uma dura lição sobre a compaixão e a necessidade de permitir que a morte
venha aos que estão morrendo. As lagartas cabeludas que caíam dos seus galhos e
voltavam a subir, arrastando-se, me ensinaram a determinação. As cócegas do seu
caminhar no meu braço me revelaram como a pele pode ter vida própria. Subir ao
alto das árvores me mostrou como seria o sexo um dia.

Estes, Clarissa Pinkola
Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher
selvagem/de Clarissa Pinkola Estes;tradução de Waldéa Barcellos;
consultoria da coleção, Alzira M. Cohen. – Rio de Janeiro: Rocco, 1994

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